Gustavo Duarte, nascido em São Paulo. Como poeta, uma passagem fracassada pelo largo São Francisco e o livro Lar de Orates, editora Giostri. Professor autônomo há nove anos, atuante em projetos de educação popular e redação pré-vestibular.
DO(S) TÍTULO(S): VIAGEM OU VIAGENS?
A condição de viajante não é dada apenas por sua dimensão espacial, ou seja, não viaja aquele que meramente se desloca de um lugar para o outro. A viagem pressupõe um certo recorte do tempo, na medida em que é definida pela condição de transitoriedade que se estabelece entre os momentos de chegada e partida, assim como pela condição de permanência, ambas marcadas pela determinação dos espaços entendidos enquanto origem e destino. Quem porventura migra do norte ao sul não se diz viajante, uma vez que a chegada pretende ser definitiva. A experiência que se segue no destino do imigrante é realizada em condição de permanência em seu novo espaço, onde enfim reside. O viajante, por sua vez, respira e conhece ares estrangeiros por um intervalo de tempo delimitado. A viagem constitui-se, dessa forma, pela relação de alternância do sujeito que transita e permanece por entre as dimensões do espaço-tempo.
Talvez por essa dupla dimensão, a palavra viajar tenha adquirido o significado de reflexão distraída, aquela de quem passeia, preso ao chão, pela dimensão dos pensamentos. Por distração entende-se a quebra de concentração da consciência em relação ao objeto em foco. Desse modo, a distração é igualmente relativizada conforme o tempo e o espaço do observador, caracterizando-se por um desvio ou por um cessar da atenção que salta do olhar. O sujeito distraído não é, portanto, aquele que não presta atenção, mas sim ao qual fogem de vista os fatos que recolhem a atenção predominante no espaço-tempo cotidiano. Sua atenção é outra, guiada por outros lugares, numa outra temporalidade.
Nesse sentido, viaja quem transita pelo mundo das ideias tanto quanto quem atravessa fronteiras no mundo material. Esse alternar entre estados da consciência existe sempre em função da ruptura do tempo que coordena a relação do sujeito com seu espaço-tempo. Não à toa, a imagem do viajante se assemelha à do sujeito distraído, ambos de passagem, procurando pequenos recortes inéditos por onde já se acostumaram os demais. Fato este que a linguagem consagrou no uso metafórico do viajar.
Belo exemplo dessa rica ambiguidade encontramos num clássico da literatura do final do século XVIII, Viagem ao redor do meu quarto, de Xavier de Maistre, que declara já de saída:
“Empreendi e levei a cabo uma viagem de quarenta e dois dias ao redor do meu quarto. As observações que fiz e o prazer contínuo que senti ao longo do caminho me inspiraram o desejo de trazê-lo a público; a certeza de sua utilidade facilitou a decisão. Meu coração saboreia uma satisfação inexprimível quando penso no número infinito de infelizes aos quais ofereço um recurso garantido contra o tédio e um alívio das dores de que padecem. O prazer em viajar dentro do próprio quarto está a salvo do ciúme inquieto dos homens; ele tampouco está ao sabor da fortuna. […] Não há quem possa, depois de ler este livro, recusar sua aprovação à nova maneira de viajar que introduzo ao mundo.” 1
Com essa maneira de viajar, a qual coincide com a aqui exposta anteriormente, Xavier de Maistre pretendia reafirmar sua liberdade frente ao confinamento a que fora condenado2, pois bem sabia ele que a lei não incide no território da consciência. Foi do alto da fortaleza de Turim que o tenente francês relatou ao mundo sua viagem subversiva, percorrendo os pontos da filosofia e da cultura de sua época, à luz de seu olhar distante dos passos contados nas ruas.
No mesmo sentido, mais belo, porém, foi o título escolhido por Almeida Garret, que referindo Xavier de Maistre, escreve, logo nas primeiras décadas do século seguinte, Viagens na minha terra3. A utilização do plural – viagens em vez de viagem – reforça as várias dimensões que a palavra viajar admite, na medida em que a obra trata, além da viagem que de fato fez Garret de Lisboa à Santarém, das diversas reflexões colecionadas pelo caminho, viagens estas que carregam em si o valor essencial da obra.
Assim sendo, podemos encontrar em Viagem de um alemão à Itália4, mais do que um guia das artes e costumes italianos, como tradicionalmente interpretam os estudos estéticos, há nessa obra filosófica múltiplas dimensões do viajar oferecidos por Karl Phillip Moritz por entre os limites do belo ao longo do período em que o autor esteve na condição de viajante. Neste percurso, julgamos encontrar, por diversas ocasiões, pistas que nos apontam ao fato estético de Jorge Luís Borges5, o qual será apresentado e discutido a seguir.
O FATO ESTÉTICO DE BORGES
“A música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares querem dizer algo, ou algo disseram que não deveríamos ter perdido, ou estão prestes a dizer algo; essa iminência de uma revelação, que não se produz, é talvez o fato estético”.6
Quem por chance ou (des)ocupação já esbarrou nessa abalizada citação, decerto não caminha como outrora. Por onde passamos, permanece a inquisição: Estaria aqui, nessa música? Nesse rosto? Nesse crepúsculo? Nesse lugar? Será esse o fato estético? E o que não deveríamos ter perdido? Será agora o momento iminente? A revelação, por que não se produz? Que é, que diz, onde está o fato estético?
Não há razão para decifrar, visto que a definição de fato estético carrega consigo os mesmos contornos daquilo o que define — não se revela, antes devora. A revelação iminente que certa beleza expressa não se produz por um motivo evidente que é sua genitura, necessidade vital; o enigma é sua condição de existência, sua resolução resulta em sua dissolução, tal qual esfinge7.
Trata-se do fato por seus efeitos, não pelas causas. Como relata Borges no referido ensaio, a satisfação concomitante à inquietação — reações suscitadas pelo fato estético — se dão justamente na aparente ausência de sentido, a forma virtuosa que independe do conteúdo. Desse modo, a compreensão das palavras de Borges não deve implicar em domínio racional sobre as manifestações sensíveis da matéria, longe disso, eleva a consciência à sujeição do que se sabe pelo que não se pode saber.
Ainda assim, para além da fruição, haveria valor prático em definição de tal esmero? Atenção. Preste atenção. É preciso prestar atenção. Educar o olhar. É preciso estar aberto e disposto. Somente assim, despertos e conscientes da existência (dela e nossa), a beleza nos comunica. Do contrário passeamos inertes, ao passo que ela desvanece, eis o alerta de Borges. Este mesmo alerta, esta mesma fundamentação estética, encontramos nas viagens de Karl Philipp Moritz.
À PROCURA DO FATO ESTÉTICO NAS VIAGENS DE MORITZ
O conjunto da obra filosófica de Moritz trata de diversas questões fundamentais no campo da estética, algumas contextuais, diretamente ligadas aos debates de sua época, outras que persistem por toda a história do pensamento. A relação entre a parte e o todo, a utilização dos adereços, o princípio de imitação da natureza, a finalidade e autonomia da obra de arte são alguns dos principais tópicos desenvolvidos em seus escritos.
Podemos identificar, contudo, por trás de seu ímpeto acadêmico, uma grande preocupação, uma motivação específica ou, por assim dizer, a força motriz de suas reflexões: a procura pelo belo essencial e a consequente correta contemplação das artes. No cartaz de divulgação de suas aulas na Academia Real de Artes e Ciências Mecânicas de Berlim, fica evidente o fim de sua empresa:
“Por motivos elevados, de 11 de março até o final de julho, às quartas-feiras e sábados à tarde, das cinco até as seis horas, no salão da Academia Real de Artes e Ciências Mecânicas, conduzirei palestras públicas sobre a teoria das belas artes, nas quais procurarei desenvolver o conceito do belo em suas determinações particulares, segundo os princípios mais simples, e reduzir a essência das obras de arte singulares a esse princípio central, de modo que o gosto ou a faculdade de sentir para o belo tenha um ponto firme, a partir do qual possa em todos os momentos corrigir o sentimento obscuro durante a contemplação ou o julgamento do belo, orientando ao mesmo tempo o seu juízo diante do entendimento”.8
Suas aulas interessavam, pois, a todos que desejassem adquirir ou elevar a faculdade de sentir para o belo, para que assim pudessem melhor conduzir os sentidos e os pensamentos diante da obra de arte. Nesse sentido, pode-se afirmar que o trabalho de Moritz pretende construir uma certa educação do olhar, de modo a habilitar quem quer que seja ao usufruto pleno da beleza. Vejamos algumas passagens de suas viagens em que essa pretensão se enuncia de modo mais bem definido:
“Para considerar, contudo, uma pintura de Ticiano em sua beleza, o olho deve primeiro se acostumar a ser inteiramente olho, a se comportar com passividade, a não espreitar e a não investigar demasiadamente, mas permitir que a impressão do todo atue gradualmente sobre si, a fim de que se procure o belo, que está aqui imediatamente diante dos olhos, não muito longe no âmbito da fantasia ou mesmo no pensamento” 9
“Tal como um oceano, diante da alma flutua um universo de belas formas e é necessário primeiro se orientar nesse grande palco antes que o olhar seja capturado pelas configurações singulares” 10
“Assim como em todos os objetos sérios, também nas construções não devem nunca ser buscados o surpreendente e o inesperado, se não se quiser degenerar a arquitetura num gosto pueril e sem elaboração” 11
“Ouve-se, constantemente, jovens artistas exclamarem diante da visão de uma grande obra de arte qualquer: o braço, a mão, o pé, estão mal desenhados! E contudo, sem o saber, logo recaem no mesmo erro que percebem nos outros. Isso pode ser explicado muito naturalmente: enquanto meramente se contemplar, a atenção não é facilmente presa por nenhuma das partes, mas é, por assim dizer, livre e desprendida o suficiente para vaguear pelo todo e para comparar com facilidade, umas com as outras, as partes singulares” 12
“Pois se a alma deve ser atraída pelos objetos que a circundam, ela ora deseja abranger de uma só vez o todo, ora se perder novamente em sinuosidades suaves, no que se mostre apenas furtivamente à vista aquilo que deve vir, não se mostrando em toda a sua abrangência antes de ser plenamente percorrido” 13
Em cada um desses trechos (e em tantos outros não citados) podemos perceber que as reflexões de Moritz acerca da obra de arte caminham sempre na direção de orientar, tanto quem gera quanto quem dela se alimenta, a postura do olhar, a condução da atenção por entre as partes sem que se perca de vista sempre a perspectiva diante do todo. Mais do que simples coordenadas, Moritz oferece o mapa que leva ao tesouro contido na autêntica obra de arte: o belo essencial. Não basta, entretanto, cegamente segui-las, pois sua orientação cuida disciplinar antes a consciência, o foco de atenção dos pensamentos em que as formas incidem.
Disciplina que passa também pela dimensão do tempo, na medida em que a contemplação exige do observador o estado de calma, ou seja, não se trata apenas de percorrer com os olhos determinada ordenação de linhas, cores e elementos sugerida pela obra de arte, pois é juntamente através da temporalidade e da espacialidade que se compõe as formas estéticas. Essa dimensão temporal da contemplação é salientada por Moritz diante da pintura de teto de Pietro da Cortona no Palácio Barberini, onde ele escreve: “É necessário, todavia, reservar um certo tempo para encontrar a saída do labirinto e para investigar com calma, sentado num dos bancos, essa composição de todos os lados” 14.
A educação do olhar não implica, dessa maneira, numa espécie de guia que indica para onde se deva olhar, tampouco um portifólio de referências externas que se deve encontrar durante a apreciação de uma obra de arte. A movimentação do olhar nada mais é do que extensão da consciência, esta quem articula e processa os efeitos produzidos pelo trabalho artístico. O que se pretende é harmonizar o percurso dos pensamentos pelo percurso das sensações que a obra oferece. Belo exemplo dessa educação é a seguinte passagem das viagens de Moritz:
“Quando considerados como símbolos da potência, da força, da sabedoria e da beleza, ainda agora brilha nesses ideais divinos dos gregos o espírito claro que transpôs as ideias mais sublimes do entendimento para formas e contornos, expondo de novo intuitivamente, por meio da arte, a maioria dos conceitos que uma filosofia esclarecida fosse capaz de ensinar” 15.
A OBRA DE ARTE, O BELO ESSENCIAL E O FATO ESTÉTICO
Educado o olhar segundo Moritz, tal como em Borges, o sujeito poderá, quem sabe, encontrar a beleza. Mas do que se trata essa beleza? Ou como define Moritz, o belo essencial. E em que medida a obra de arte encerra beleza? E o fato estético de Borges, como se relaciona com a fundamentação estética de Moritz? Vamos, pois, à viagem. Logo na chegada, num de seus primeiros passeios pelas obras italianas, Moritz fala em “obra de arte autêntica”:
“Em certo sentido predomina em Michelangelo muito mais uma grande maneira do que um grande estilo – na medida em que se pensa por estilo o imutável, o permanente na obra de arte autêntica, pelo qual a obra mesma é elevada acima da originalidade” 16.
Pressupõe-se, assim, que nem tudo o que se denomina obra de arte é, na visão de Moritz, verdadeiramente uma obra de arte. Essa distinção ganhará mais peso em seu julgamento diante da escola holandesa:
“Por meio do desenho e da cor, a escola holandesa procurou alcançar a natureza ordinária de modo tão perfeito quanto possível. Suas composições não são propriamente jamais um todo, de modo que se poderia muitas vezes reunir vários de seus quadros em uma única moldura, sem prejudicar a impressão que causam. Elas expõem a vida tal como ela é, em suas manifestações alegres, em seus movimentos saltitantes e no rude regozijo dos sentidos. – Apresentam o ciclo ordinário da vida, mas nada que eleve a humanidade” 17.
Tais considerações demonstram qual o ponto firme que divide as obras autênticas das demais – a “elevação da humanidade”. Associada sempre ao espírito, essa distinção surge em diversos momentos da viagem de Moritz, dos quais podemos citar seu encontro com as estátuas no Belvedere:
“É uma alegria quando um grupo de pessoas se reúne aqui à noite para contemplar à luz de tochas as estátuas no Belvedere. – Não se perde nunca essa oportunidade, porque essas contemplações são para qualquer um ganho e aquisição para o espírito, o que nada depois poderá tirar” 18.
A obra de arte autêntica é, portanto, aquela que faz dilatar no humano a dimensão espiritual. Esse acréscimo evolutivo da humanidade se dá no acesso ao belo essencial (ou belo verdadeiro). A caracterização dessa beleza não foi concluída de forma sistemática, em razão dos eventos que seguiram na vida de Moritz, culminando com sua morte precoce. Porém, é possível identificar seus fundamentos nas críticas escritas em solo italiano. Diante da Fortuna, de Guido, ele diz:
“As meras figuras alegóricas prejudicam a atenção para a bela arte e desviam da questão principal: pois tão logo uma bela figura tem de indicar e significar ainda algo além de si mesma, ela se aproxima ao mero símbolo, no qual, assim como nas letras com que escrevemos, não alcança principalmente a beleza. A obra de arte não tem então mais a sua finalidade encerrada em si mesma, mas muito mais voltada para fora. – O belo verdadeiro não consiste, todavia, em uma coisa não meramente significar a si mesma, designar a si mesma, abranger a si mesma, mas em ser um todo consumado em si mesmo” 19
Percebe-se, aqui, a questão da autonomia da obra de arte, a qual não exige soma alguma de conhecimentos prévios ou formação erudita. É na consideração do todo, e não no exame das partes, que se produz o efeito almejado pela correta contemplação. Este efeito se dá, como veremos, tanto no plano dos sentidos, como a satisfação, ou prazer, mas principalmente na consciência, uma vez que o belo é uma língua mais elevada onde a harmonia do todo se desvela20.
De tal modo, infere-se das apreciações de Moritz que o belo essencial pode ou não estar presente numa obra de arte. Em caso positivo, esta pode ser considerada autêntica, uma vez que acessa à alma humana. Via que se abre através do olhar educado, aquele dotado da faculdade de sentir o belo, o que significa disciplinar a consciência que transita entre o prazer produzido através dos sentidos e os pensamentos que surgem na temporalidade do mundo das ideias. É na dualidade entre corpo e mente, tempo e espaço que se esconde e se revela o belo essencial, ocorrência essa identificada por Borges no fato estético, na medida em que este se determina pelos efeitos que somente a totalidade das dimensões humanas é capaz de processar.
Não obstante, poderíamos questionar se a educação do olhar representa a perda da capacidade de vislumbrar a beleza, uma vez que comumente associamos o olhar da criança com a pureza das sensações, com a liberdade da criatividade?
Tentador e reducionista responder que sim. Mas não podemos perder de vista que o belo essencial, assim como o fato estético, não carrega unicamente a satisfação; a inquietação é parte do processo de amadurecimento da consciência. Na infância tudo é belo em abundância, em contrapartida não existe a contemplação, pois o ato de descansar e apreciar, sentir um breve instante de alívio consagrado em paz de espírito, pressupõe o peso da busca por sentido que a consciência humana produz.
No instante em que o belo assume o lugar do sentido racional, o pensamento, ainda que satisfeito, se inquieta. Isto posto, não pode haver fato estético onde não houver maturidade e incompletude. Sem a expectativa por algo a ser dito, não haverá iminência de uma revelação. A criança vive realizada em sua condição infante, e ainda que sua satisfação seja volúvel, é pura e plena enquanto decorre, sem a companhia da inquietação. Nesse estágio da vida, caracterização da inquietude é outra, é curiosidade pulsante que mobiliza; a da tomada de consciência é perturbação que assombra.
Conforme enunciado em A assinatura do belo21, encontramos no fato estético de Borges a síntese literária do pensamento filosófico de Moritz no que diz respeito à contemplação do belo essencial, que tensiona a dualidade da consciência, sempre dividia entre corpo e mente, tempo e espaço:
“A luz em que o belo se mostra não parte de nós, mas flui do belo ele mesmo, afugentando por um momento a penumbra ao nosso redor. Por isso sentimos, diante da visão do belo, o nosso coração e o nosso entendimento ampliados, porque parece que se torna visível e perceptível algo que sempre escapa aos nossos pensamentos investigativos, os quais descrevem apenas com muito esforço, mediante os débeis sons da linguagem, todo o seu percurso e sempre recaem em si mesmos ali onde esperavam alcançar o seu objeto mais elevado.” 22
A TRANSFORMAÇÃO DE MORITZ: DO BELO ESSENCIAL AO FATO ESTÉTICO
Podemos notar, contudo, que a aproximação entre Moritz e Borges não se evidencia em ritmo uniforme, na medida em que o Moritz da chegada não é o mesmo da partida. Acontece que a imersão no belo essencial altera a percepção de Moritz, conforme postulado em suas reflexões, e seu espírito nos parece mais elevado em suas últimas reflexões do que nas primeiras. Fato que comprova suas teses, pois se deixasse a Itália o ser igualmente constituído em forma e substância na Alemanha, não seriam reais os efeitos sobre os quais disserta, tampouco se poderia falar em autêntica viagem.
Ainda que dominasse a educação do olhar, faltava em Moritz a conclusão da lição de Borges, esta que somente a natureza temporal do belo essencial pode ensinar e que, na condição de viajante, pôde ser experienciada em sua contemplação. Em um passeio ao longo do rio Tibre, na data de 20 de setembro, o filósofo escreve:
“Duas vezes vi as margens do Tibre verdejarem – agora as folhas estão novamente amarelando – o céu está nublado, e o escuro bosque de ciprestes sobre o Monte Maria olha de modo sério e solene para a amarela correnteza aqui embaixo. – A correnteza e o tempo fluem irresistivelmente ao meu lado; mas ainda permaneço firme e olho para o futuro; o meu sentimento interior me diz que esse turbilhão poderoso da mudança, que tudo abraça, ainda não arrancará esse tronco sobre o qual eu cresço e também ainda não soltará as suas raízes de seus alicerces. – Apreendo o fugaz e faço dele minha propriedade permanente, a qual o tempo e o acaso não poderão roubar de mim!” 23
O desejo de Moritz em se apropriar do belo, lutando contra a inexorabilidade do tempo, reflete um ponto cego de sua racionalidade, um estado de negação em relação à natureza impermanente das coisas. Não significa que ele não tenha consciência dessa natureza, pois deixa claro que possui, porém se nega a aceitá-la, num bradar pueril contra a fugacidade da beleza.
Há, dessa forma, ainda um desequilíbrio entre a satisfação e a inquietação; ao passo que a primeira fluí pelos pensamentos, estes anseiam aprisioná-la, não apenas em memória, mas pelas grades da razão, que a cristaliza em conceitos.
A fluidez da satisfação é quem produz a iminência de uma revelação, descrita no fato estético de Borges, e a não realização dessa dimensão racional é que gera a inquietude. Se a consciência não estiver em paz com a inquietude, estará numa insuportável contradição diante do belo: elevado o espírito, amando a beleza em sua aparição, com raiva e deprimindo-se em sua ausência.
Moritz não sucumbe a esta contradição, se aproximando assim à contemplação do belo essencial enquanto fato estético de Borges. Na iminência do fim de suas viagens, ele remete, em tom de censura, à passagem em que brada ante a fugacidade do belo, corrigindo sua postura:
“É com nostalgia que vos escrevo de Roma pela última vez. – Há algumas noites estava com Herder na torre do Capitólio – O sol se punha – As montanhas cintilavam no seu reflexo – os seus últimos raios iluminavam o cume do mausoléu de Cestius e o telhado antigo e cinza do Panteão. Abaixo de nós, no vale escuro, corria o rio Tibre entre os montes de Roma. O meu olho sorveu ávido os raios do sol poente; e fiz comigo mesmo um voto sagrado: alegrar-me com cada uma das belas cenas da vida até o seu último instante, sem me queixar ou resmungar sobre o seu término! Podem, pois, cair as cortinas quando o espetáculo for consumado – a imagem que desapareceu mergulha fundo na alma e começa a música sublime, na qual se dissolve a aflição da despedida e toda a dor.” 24
A passagem do belo que precipita no corpo a alma agora é aceita em sua dimensão transitória, e o instante em que se dissolve não mais causa a revolta em Moritz, ao contrário, é acomodado, conciliando a satisfação com a inquietação.
REFERÊNCIAS
1 Viagem ao redor do meu quarto, Maistre, Xavier de; tradução de Veresa Moraes;
posfácio de Enrique Vilas-Matas – São Paulo: Editora 34, 2020. 1° edição.
2 Xavier de Maistre teve de cumprir prisão domiciliar por um período de 42 dias após se
envolver num imbróglio pré-carnavalesco seguido de um duelo.
3 GARRETT, Almeida, 1799-1854. Viagens na minha terra / por J. B. de Almeida
Garrett. – [1a ed.]. – Lisboa : Typ. Gazeta dos Tribunais, 1846.
4 Moritz, Karl Philipp, 1756-1793. Viagem de um alemão à Itália: 1786-1788 : nas cartas
de Karl Philipp Moritz / Karl Philipp Moritz ; tradução, introdução e notas de Oliver
Tolle. — São Paulo: Humanitas Editorial São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo 2007. 218 p.: il. (A formação da estética, 3).
5 Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo (Buenos Aires, 24 de agosto de 1899 —
Genebra, 14 de junho de 1986) foi um escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta
argentino.[1][2][3] Fez o colegial no Colégio Calvino, na Suíça. Estudou Direito na
Universidade de Buenos Aires. Mais tarde, Borges estudou na Universidade de
Cambridge para tornar-se professor. Foi, ainda, diretor da Biblioteca Nacional de Buenos
Aires.
6 A BORGES, Jorge Luis. muralha e os livros, In Outras inquisições Obras completas,
volume 2 – São Paulo: Globo, 1999.
7 “O que é que de manhã tem quatro patas, de tarde tem duas e de noite tem três? O ser
humano. Ele engatinha quando criança, caminha quando é adulto e precisa de uma
bengala assim que envelhece.” Segundo a mitologia grega, Édipo foi quem respondeu à
questão e derrotou a Esfinge.
8 Moritz, Karl Philipp. Viagem de um alemão à Itália: 1786-1788. Página 7.
9 Moritz, Karl Philipp. Viagem de um alemão à Itália: 1786-1788. Página 32.
10 Moritz, Karl Philipp. Viagem de um alemão à Itália: 1786-1788. Página 61.
11 Moritz, Karl Philipp. Viagem de um alemão à Itália: 1786-1788. Página 64.
12 Moritz, Karl Philipp. Viagem de um alemão à Itália: 1786-1788. Página 83.
13 Moritz, Karl Philipp. Viagem de um alemão à Itália: 1786-1788. Página 104.
14 Moritz, Karl Philipp. Viagem de um alemão à Itália: 1786-1788. Página 49.
15 Moritz, Karl Philipp. Viagem de um alemão à Itália: 1786-1788. Página 42.
16 Moritz, Karl Philipp. Viagem de um alemão à Itália: 1786-1788. Página 21.
17 Moritz, Karl Philipp. Viagem de um alemão à Itália: 1786-1788. Página 99.
18 Moritz, Karl Philipp. Viagem de um alemão à Itália: 1786-1788. Página 109.
19 Moritz, Karl Philipp. Viagem de um alemão à Itália: 1786-1788. Página 70.
20 “O belo é uma língua mais elevada – Onde a harmonia do todo recebeu um nome, ali
foi desvelado o belo” Moritz, Karl Philipp. Viagem de um alemão à Itália: 1786-1788.
Página 142.
21 Moritz pulicou em 1788 um artigo com esse título, Die Signatur des Schönen, em que
ele trata da linguagem da arte, a qual não pode adequadamente ser expressa em palavras
e só é devidamente alcançada mediante a sua contemplação silenciosa. (Referência
retirada de A viagem de um alemão à Itália, página 101)
22 MORITZ, K. P. A assinatura do belo. In: Digitalbibliothek, p.131483. Título
original: Die Signatur des Schönen.
23 Moritz, Karl Philipp. Viagem de um alemão à Itália: 1786-1788. Página 180.
24 Moritz, Karl Philipp. Viagem de um alemão à Itália: 1786-1788. Página 204.
Foto de Anna Carolina Rizzon.
Comment (1)
Bom texto!